Protocolo médico propõe que pessoas que usam insulina tenham direito de pilotar avião no Brasil

Tratamento

Maurílio Goeldner

Repórter e editor do portal Um Diabético. Escreve sobre saúde desde os tempos da faculdade de jornalismo. Para sugerir uma reportagem: redacao@umdiabetico.com.br

O nome Marcelo é fictício. Não podemos identificar quem é o brasileiro de 43 anos de idade, que convive com diabetes tipo 1 desde os 10, e precisou ir aos Estados Unidos para conseguir autorização para pilotar aviões comerciais (classe 3). “A minha história é bem longa, já pensei até em transplante de pâncreas para seguir a profissão”, diz o homem apaixonado por aviação: “Eu fiz nos EUA e depois convalidei aqui, mas pra isso eu não declarei (que tinha diabetes) quando fiz o exame médico”. A situação pode ser mais comum do que se pensa. Como no Brasil as regras da Agência Nacional de Aviação Civil não permitem que pessoas com diabetes que usam insulina pilotem aviões, Marcelo escondeu sua situação de saúde. “Pra mim isso sempre foi muito ruim. Nos Estados Unidos pessoas com diabetes com tipo 1 podem ser pilotos privados desde 1997. Eu mesmo passei no exame médico dessa forma lá em 2001”, relembra ele. 

O endocrinologista João Salles, vice presidente da SBD, ajudou a elaborar o protocolo

Uma iniciativa de um grupo de médicos com apoio da Sociedade Brasileira de Diabetes tenta mudar essa regra da ANAC. O endocrinologista João Salles, vice presidente da SBD, ajudou a elaborar um protocolo, segundo ele já entregue à agência. “As pessoas com diabetes não podem ser excluídas. O fato de ter diabetes não pode limitar o raio de atuação de uma pessoa. Uma vez que hoje tudo que temos de mais moderno pra tratar o diabetes deixam as pessoas em igualdade, principalmente a monitorização em tempo real”, afirma ele. 

Tivemos acesso com exclusividade ao documento que prevê uma série de requisitos para que insulinodependentes possam comandar voos comerciais. Uma das regras é que o piloto use um sistema de monitoramento contínuo de glicose e um glicosímetro reserva, além de suplemento energético que possua glicose de absorção rápida durante o voo.

O protocolo também prevê que a empresa área deverá acompanhar em terra e em tempo real a glicemia do piloto. Isso é possível graças ao sistema de monitoramento conectado em rede. Além disso toda tripulação precisa ter conhecimento da condição de saúde do piloto ou co-piloto. 

Ainda há regras diferenciadas para decolagem. O voo só pode começar depois de 90 minutos da administração da insulina, seja de curta ou longa ação e o piloto deve fazer uma medição de glicemia meia hora antes da decolagem: se a glicemia for superior a 270 mg/dL o voo deve ser cancelado; se a glicemia estiver abaixo de 90 mg/dL, o piloto deve ingerir, pelo menos, 15 gramas de glicose rapidamente absorvível e tornar a medir a glicemia meia hora depois. Se a glicemia estiver entre 90 e 270 mg/dL, o voo pode ser efetuado. Se a glicemia estiver abaixo de 90, o processo deve ser repetido. 

Durante o voo, o piloto deve medir o nível de glicose no sangue 30 minutos depois da decolagem, a cada hora de voo e meia hora antes do procedimento de aproximação e pouso. Nesse caso se a glicemia estiver abaixo de 90 mg/dL, o piloto deve ingerir 30 gramas de glicose, o voo deve obter preferência para o pouso e o pouso deve ser realizado por outro piloto. Mesmo procedimento deve ser adotado se a glicemia for superior a 270 mg/dL. “Ter diabetes hoje não pode ser um limitador pra nada, uma vez que existe a monitorização”, defende o endocrinologista João Salles. Confira aqui os principais pontos da proposta.

Anac não confirma que medida está em estudo 

O portal Um Diabético entrou em contato com a Anac para saber como está o protocolo desenvolvido pelos médicos. Em nota oficial a Agência não confirma a flexibilização das regras do Regulamento Brasileiro da Aviação Civil nº 67, que dispõe sobre os requisitos para concessão de certificados médicos aeronáuticos. “A Anac preza pela manutenção dos mais altos padrões de segurança operacional no âmbito da aviação civil em qualquer alteração normativa a ser avaliada e eventualmente proposta pela Agência”, afirma o comunicado. 

A Agência também explica que atualmente pessoas com diabetes que não usam insulina podem ser consideradas aptas a receberem os certificados médicos aeronáuticos de 1ª (aluno piloto), 2ª (piloto privado) e 5ª classes. A decisão cabe ao examinador “desde que o candidato comprove que seu estado metabólico possa controlar-se de maneira satisfatória somente com dieta, ou dieta combinada com ingestão por via oral de medicamentos antidiabéticos, cujo uso seja compatível com o exercício seguro das atribuições do tripulante em voo (ou piloto remoto)”, diz a norma. 

A nota da Anac enfatiza ainda que uma eventual alteração vai exigir revisões do órgão e até mesmo consulta pública ou a discussão com outras entidades: “O prazo final dessas alterações é extremamente variável, dada a necessidade de deliberar cuidadosamente, com o setor da aviação e com a sociedade em geral, o impacto de alterações normativas”. Confira a íntegra do comunicado da Anac aqui.

Ricardo Paiva, 70, tem diabetes tipo 1 desde os 14 anos: exame médico foi obstáculo pra se tornar piloto

Ricardo Negreiros de Paiva aos 70 anos de idade lembra que desde a juventude tentou ser piloto, mas o diabetes tipo 1 fez ele recalcular a rota. “Eu passei nas provas, foi uma coquista muito grande. Mas surgiu o grande obstáculo: o exame médico. Foi aí que pensei é aqui que vai acabar minha carreira de piloto”, lembra ele que se tornou engenheiro aeroespacial 

Marcelo torce para que a medida seja colocada em prática: “Eu me enquadro aí e acho a ideia ótima. Até mesmo a bomba de insulina pode dar mais segurança, já que ela tem mecanismo de corte de insulina em caso de açúcar baixo”, complementa ele. 

O médico que ajudou a criar o protocolo também tranquiliza os passageiros de voos que venham a ser conduzidos por pilotos insulinodependentes: “pode ficar tranquilo, ele vai ter segurança. Esse piloto vai voar sempre monitorizado e vai sempre voar seguindo um protocolo rígido. Além disso todo mundo da tripulação vai ter conhecimento da condição da pessoa com diabetes e as pessoas vão estar atentas a essa situação”, afirma João Salles. 

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